Oito equipes lideradas exclusivamente por mulheres foram convocadas para participar de um concurso de projetos urbanos que remodelaria a capital austríaca em 1993. Organizado pela urbanista e engenheira de formação Eva Kail, o edital restringia a participação dos homens na competição, um posicionamento justificado com base em dados que indicavam que nos últimos anos todos os projetos urbanos, seja por meio de competições ou não, haviam sido liderados por pessoas do sexo masculino.
O objeto do concurso tratava do desenho de um masterplan e de blocos residenciais para o novo bairro Frauen-Werk-Stadt em Viena, e tendo em vista a preocupação sob a qual foi organizado, ele se tornou o primeiro distrito desenhado e construído atendendo critérios de perspectiva de gênero: feito por mulheres e — principalmente — para mulheres. Um conceito que engloba outras pluralidades presentes em uma sociedade, podendo referir-se à vulnerabilidade social, diferenças etárias, restrições de mobilidade, diversidade cultural, e não focando apenas na dualidade masculino-feminino. Ou seja, a perspectiva de gênero aplicada ao urbanismo significa colocar em igualdade de condições as exigências advindas do mundo produtivo e aquelas derivadas do mundo reprodutivo.
Eva Kail, o grande nome responsável por trazer precursoramente este tema dentro do desenho urbano, trabalha com a cidade de Viena desde 1986, mas foi no início da década de 90 que seus esforços em incorporar a perspectiva feminina no planejamento urbano ganharam evidência. Em 1991, Kail dirigiu um seminário, um questionário sobre segurança e posteriormente, uma exposição fotográfica intitulada: Who owns public space? Women’s everyday life in the city, que retratava a forma como as mulheres ocupavam o espaço público na época, levantando um interessante debate com expressiva participação popular. Para o conceito da exposição, Kail baseou-se nas oficinas que havia feito com mulheres e centrou-se nas necessidades dos pedestres, nas áreas verdes e espaços públicos. Com o apoio do governo, fotógrafos profissionais foram contratados para registrar o cotidiano de diferentes mulheres: jovens, idosas, mães, solteiras, cadeirantes, imigrantes etc., tendo como principal intuito interpretar a cidade sob a perspectiva das mulheres. O tema era expressivamente incomum para a época e a resistência foi grande, tanto que a própria Eva comenta em entrevista que certa vez um revisor de um subdepartamento público disse que se havia uma exposição sobre as mulheres nas cidades, também deveria haver uma sobre cães e canários.
Entretanto, apesar dos desafios, em 1993 surge o Departamento de Mulheres da cidade de Viena e 5 anos depois, inaugurou-se oficialmente o Departamento de Gênero de Viena, coordenado por Eva. Por meio deste espaço, foi possível criar mais de 60 projetos-pilotos que envolvem a remodelação urbana sob perspectiva de gênero, desenhos baseados em pesquisas conduzidas pelo próprio departamento que mapearam a apropriação do espaço público e levantaram aportes fundamentais para as diretrizes de projetos.
Dentre tantas realizações, o concurso de 1993 foi uma das mais importantes pois se apresentou como materialização de uma série de transformações que vinham ocorrendo, muito lentamente, em Viena. A intervenção se situava em uma área 2,3 hectares, ao norte da cidade, que estava designada a ser urbanizada e que ficava muito próxima de uma região bastante densificada. Além da parte urbana, como premissa, estavam incluídas ainda unidades residenciais que deveriam incorporar a perspectiva de gênero em seu desenho, tanto na escala urbana como na doméstica, focando na criação de espaços sociais.
Cada uma das oito arquitetas selecionadas teve doze semanas para elaborar suas propostas e, ao final do processo, o júri elegeu como vencedor o projeto de autoria da arquiteta austríaca Franziska Ullmann. Como principais diretrizes, sua proposta valorizava a flexibilidade espacial, as oportunidades de interação, a conexão entre as residências pelas galerias, os serviços comunitários, os espaços para brincar e a segurança. Contava ainda com ambientes coletivos como lavanderia e local para armazenamento de objetos grandes como bicicletas ou carrinhos de bebê. No âmbito público, foram criados espaços sociais conformados por praças, parques, calçadas e locais cobertos comunitários de modo que cada usuário — seja por idade ou por outra particularidade — encontrasse um lugar que estivesse de acordo com as suas necessidades em um entorno próximo à moradia. Além disso, prezou-se por manter a conexão com a rua — que se torna a artéria principal do novo bairro — e os habitantes dos edifícios periféricos já existentes.
Apesar da proposta para o masterplan ter sido amplamente aceita no contexto do concurso, a aprovação do projeto a nível municipal encontrou grandes dificuldades. Segundo Franziska, isso se deu pela resistência que havia em entender o tipo de apartamentos pretendido pelo projeto, com a galeria-corredor acompanhando uma de suas fachadas. A proposta, conta ela, só foi acatada após ocorrer a substituição do supervisor desse processo (um homem), que a esta altura já estava na 14ª revisão completa do projeto.
Além disso, a execução da proposta de Franziska foi designada a quatro arquitetas diferentes, demais participantes do concurso. Isso se deu porque a cidade de Viena só poderia arcar com a metade das residências do complexo, às quais ficaram à cargo da vencedora do concurso. Diante disso, houve a necessidade de encontrar outro investidor interessado em abraçar a ideia. Este acabou sendo o GPA (Sindicato de Trabalhadores do Setor Privado), que na ocasião era dirigido por uma mulher, Elizabeth Weihsmann, que se mostrou bastante receptiva ao projeto. Por parte da cidade de Viena, no entanto, havia preconceito e ceticismo sobre o trabalho de mulheres na arquitetura.
Passados 30 anos, é possível compreender claramente o papel fundamental que a iniciativa da década de 90 teve na perspectiva social e urbana que Viena apresenta hoje em dia. O Frauen-Werk-Stadt marcou o início de uma série de atuações na cidade, sendo precedido pelos Frauen-Werk-Stadt II e III. O projeto também influenciou na mudança notável dos regulamentos das habitações sociais e acessos à subsídios públicos. Especificamente, conseguiu-se que a aplicação da perspectiva de gênero se tornasse um requisito de pontuação e, além disso, notou-se o aumento da presença de mulheres em cargos relevantes nas comissões municipais. Mas, acima de tudo, o projeto pioneiro incorporou a atenção às tarefas diárias nos critérios projetuais de residências e seu entorno, baseado em processos de participação, pesquisa e divulgação para, posteriormente, incorporar meios de avaliação dos resultados.
Apesar dos vários exemplos de contribuições femininas ao longo da história, o trabalho das mulheres na arquitetura foi invisibilizado durante muito tempo. Até o final do século XIX, elas sequer podiam ter acesso às escolas politécnicas, e mesmo depois disso, em muitas situações, tiveram seus nomes eclipsados pelos arquitetos com quem trabalhavam. Todo esse ocultamento consequentemente leva a um desaparecimento das necessidades femininas no espaço público, e o conceito de perspectiva de gênero aparece justamente para contribuir com esse resgate. A preocupação com a ampliação da perspectiva aplicada no planejamento urbano e no desenho dos espaços construídos entende que as necessidades de um homem branco, jovem, saudável, ativo e motorizado nunca serão as mesmas de uma pessoa com mobilidade reduzida, ou então, de uma mãe com crianças sob sua responsabilidade. Ou seja, a arquitetura e urbanismo devem abandonar um desenho individualista, postulado há anos, para abarcar a pluralidade de apropriações e usuários.
Pelo fato de podermos hoje contar suas histórias, os trabalhos de mulheres como Eva Kail e Franziska Ullmann, e tantos outros nomes, servem de exemplo e motivação para que mais mulheres tenham voz e passem a ocupar posições técnicas, políticas, de gestão, mas também como simples usuárias do espaço urbano. O caminho ainda é longo, porém, este é mais um exemplo que serve para enaltecer a nossa capacidade como mulheres de realizar transformações através do empoderamento.
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